O caso da consciência 333, parte 2
O dr. Dennet ficou pasmo (se é que ele podia descrever tal sensação nesses termos, visto que nunca a havia realmente sentido antes). "Envolvimento com militares, esse caso poderá arruinar minha carreira" - foi a primeira coisa que lhe surgiu a mente... Trêmulo, pensou em tomar alguns comprimidos de emergência para evitar qualquer stress momentâneo, mas achou por bem primeiramente encerrar aquela seção, e mesmo o tratamento do paciente Parnia como um todo:
"Parnia, você chegou além do meu limite. Não posso continuar arriscando minha carreira no tratamento de indivíduo tão anarquista (nessa era essa era uma grande ofensa) quanto você... Iremos encerrar o tratamento ainda hoje, e peço encarecidamente que não comente com ninguém que algum dia fui seu psicanalista virtual!"
A consciência 333 ficou estranhamente calma, e falou ao doutor:
"Sabe dr. Dennet, devo lhe confessar uma coisa: realmente faz quase um ano que venho evitando tomar as pilúlas PG que me receitou. No início fiquei verdadeiramente apreensivo quanto a isso, pois que me parecia uma estupidez me arriscar a entrar em depressão, principalmente aqui na Terra onde esse mal é visto como algo ultrapassado, digno dos maiores alucinados nos arcabouços de contenção... Mas, sabe o que me deu a maior coragem em seguir adiante e interromper o tratamento?"
Vendo que o doutor estava tão exaltado que mal esboçou qualquer reação a pergunta, respondeu a si mesmo:
"Houve a quase um ano nosso encontro pessoal anual para discutir o tratamento e seus custos para o próximo ano. Eu sempre suspeitei de uma coisa, mas só a pude confirmar quando tive a oportunidade de conversar com o senhor pessoalmente, olhando em seus olhos - A verdade é que você nunca esteve especificamente interessado em que eu melhorasse. O senhor aceitou me tratar porque percebeu a oportunidade de tratar de alguém que foi famoso na infância, um homo sapiens geração 7 de alta cognição, e esperava que com seu 'tratamento infalível' a base das novas pílulas PG eu voltasse ao meu 'equilíbrio' e aceitasse voltar a MSGoogle-Academics, e consequentemente ao noticíario extra-planetário, o que lhe garantiria no mínimo a maior fama que poderia almejar em sua vida... Mesmo que seja uma vida a base de amplificadores genéticos, de quase 4 séculos de duração..."
"Ora, isso eu não nego. Será crime almejar ser bem sucedido na carreira? Será crime esperar que um jovem tão promissor como você pudesse aceitar finalmente que todo seu potencial cognitivo fosse devidamente explorado pela Scientia?" - Agora mais calmo, o doutor pode participar do diálogo.
"Dr. Dennet, me desculpe, mas exatamente de que carreira estamos falando?"
"Parnia, você sabe muito bem: psicoterapia."
"Uma pena doutor, pois que eu saiba a psicoterapia faz parte do tratamento de pacientes com problemas psicológicos que os aflingem e atrapalham em sua vida. Para ser um psicoterapeuta deve-se, portanto, não só estimar sempre a melhora constante e gradual de seus pacientes, como ama-los e estimula-los em qualquer caminho que lhes traga felicidade. Uma pena que nenhum desses conceitos foi compreendido pelo senhor. Uma pena que a única 'felicidade' que conhece é aquela que vem através de uma pilúla. Boa sorte doutor, ainda que viva 4 séculos, o senhor vai precisar dela..."
E desligou o holocomunicador.
***
Nota: o objetivo deste conto não é estimular pacientes em estado de depressão a deixar de tomar anti-depressivos. Se tudo o que você compreendeu desse conto foi isso, talvez seja melhor o ler novamente. Não vivemos numa "era científica-materialista" no contexto do conto, e felizmente ainda temos livre-arbítrio o suficiente para sermos capazes de discutir se nossa consciência é apenas fruto de uma configuração exótica do cérebro, ou algo mais profundo...
Crédito da foto: Mª Eugênia M. Guimarães
Marcadores: consciência, contos, neurologia
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